Select Page

Jim Hall: Vida e Obra

Jim Hall ficou conhecido como “The Quiet American” pelo seu carácter muito sóbrio e pacífico. A mãe tocava piano, o avô violino e o tio guitarra, mas foram os saxofonistas que mais marcaram o seu percurso no jazz. Na sua juventude ouvia Coleman Hawkins e Lester Young; tocou nas bandas de Sonny Rollins, Lee Konitz e Jimmy Giuffre; liderou grupos com Ron Carter, Tommy Flanagan e Bob Brookmeyer; participou ao lado de Wayne Shorter e Michel Petruciani em “Power of Three”, entre inúmeros outros projectos de relevo.

Sempre com um sentido de humor inteligente, Jim Hall destacou a importância da inspiração, da concentração e da irreverência na sua música, nas suas composições e improvisações, mas também no modo como levou a sua vida. Preferia sair de casa, entrar em contacto com a natureza ou ir para a biblioteca ler um livro como formas de se inspirar, do que insistir musicalmente numa ideia que não estava a funcionar em determinado momento.

A personalidade de Hall levou-o a estabelecer raízes bem mais profundas entre a música e a arte em geral. Tinha a consciência de que a arte pode levar-nos a sentir mais intensamente ou a ter melhores pensamentos e a agir de forma mais responsável. As condições humanas tocavam Jim de uma forma muito próxima, daí a sua busca por ideias e inspiração noutras formas de arte. Procurava a forma, o contorno, o “feeling” da ideia musical e investia no conhecimento das letras das músicas como meio de deixar entranhar mais fortemente o verdadeiro espírito de cada tema. 

 

Características musicais

O seu estilo musical acaba por não ser reconhecido por um “riff” ou motivo, mas sim pela sua abordagem, pelo som e pelo sentimento que deposita no tema. Demonstra enorme independência musical no seu fraseado, optando por não tornar implícito o baixo, o acorde ou a melodia nos seus solos.

Jim Hall tocava notas soltas, aproveitava o silêncio como parte do seu discurso musical e não se precipitava em multiplicar a guitarra num instrumento harmónico e melódico ao mesmo tempo. Distingue-se de outros guitarristas pelo uso dessa simplicidade desconcertante, o que demonstra muita confiança e independência. Não se preocupava em elaborar para complexificar a sua música nem lhe eram frequentes as incursões por “melody chords” ou outras formas de exposição musical tradicionalmente mais completas.

A sua abordagem era directa: «play through chord changes and use chord voicings in your solo» (tocar a progressão harmónica e aproveitar formas de acordes no solo). No seu discurso melódico não encontramos desperdícios de palavras, notas ou tempo. A sua construção de solos é perfeccionista, com recurso a poucos “chorus” e sem gestos desnecessários. O desenvolvimento é claro, sem que se torne aborrecido. Há, sempre, uma sensação de “caminhar para”, de direcção, mas também de novidade, já que a mesma música é interpretada de várias formas de acordo com os diversos “takes” gravados. Para além disso, cita frequentemente outros temas e apresenta motivos rítmicos variados e muito ricos.

O ritmo é o elemento que Hall mais destaca na sua música. Apreciador confesso de Freddie Green, Django Reinhardt e Charlie Christian, destaca o excelente sentido rítmico e a capacidade invulgar de Green em conduzir a banda com a guitarra. Era como se Green fosse o timoneiro do barco chamado “Count Basie Orquestra”. Muito do gozo de tocar guitarra está aqui, no “strumming” de acordes, no acompanhamento e no movimento que o seu instrumento pode proporcionar. É daqui que vem o fascínio pela figura de Django. Para Jim, ele era um explorador, um agitador rítmico que acompanhava como se fosse um baterista.

A música brasileira também desempenhou um papel importante no desenvolvimento de Jim Hall, com os seus ritmos sincopados e humorosos, assim como a música de George Van Eps, Carl Kress, Allan Reuss ou Barry Galbraith. A Big Band de Woody Herman é igualmente destacada por Hall, já que contava com Billy Bauer, assim como o Trio de Nat King Cole com Oscar Moore. Mundell Lowe, Barney Kessel ou Ritchie Havens são outras figuras incontornáveis para Hall.: «Ouçam-nos, eles vão fazer-vos sorrir.»

Em 1986 gravou um álbum de Sonny Rollins intitulado “The Quartets Featuring Jim Hall” em que deixou transparecer toda a sua amadurecida personalidade musical. No tema “John S.”, Rollins inicia o solo com uma nota sem que haja qualquer intervenção de Hall. Ele não acompanha o solo. Aguarda a chegada da Secção “B” para acrescentar, progressivamente, maior tensão, em estilo contrapontístico. Deixa que o solo seja conduzido por Rollins, o que dá profundidade à improvisação do saxofonista. Já na faixa “The Bridge” o solo de Hall como que se desvela num pequeno momento de síntese da gigantesca personalidade do guitarrista. Tudo de Hall está lá.

Uma outra característica da música de Jim Hall é a novidade, a abertura de espírito, a curiosidade e a aventura latente nas suas improvisações. Hall arrisca, experimenta, explora. «The higher the risk, the higher the reward.» A emoção de tocar pelo momento, pelo prazer e pelo sentido de humor leva-o a não ter problemas em assumir que, por vezes, se perde na própria música. Assim foi no seu “Live”, disco em que fica dois tempos desfasado no solo do tema “I Hear a Rhapsody”. Tal só lhe é possível pela extrema importância que dá ao silêncio. São as pausas que ajudam o ouvinte a poder reflectir sobre a música, pois mantém-na organizada na sua cabeça sem cair num estado de aborrecimento.

Também o sentido exploratório, a busca por soluções frescas e inesperadas, revela-se na abordagem ao instrumento. Hall procura sons distintos, harmónicos imprevisíveis, incursões “free” ou aleatórias, novas digitações ou padrões de palheta, colocações rítmicas que fazem estremecer o ouvinte… Chega mesmo a explorar cada corda como um elemento diferenciador, não entendendo a mesma nota como o mesmo som quando tocado em sítios diferentes do braço da guitarra. Cada corda tem uma cor específica consoante a corda em que é tocada.  

 

O legado inspirador de Hall

A concentração é um grande factor no sucesso das suas performances. Num pico de concentração Hall toca, de olhos fechados, qualquer coisa que precisa de ser tocada. Tocar guitarra transforma-se numa simples resposta à pergunta “o que é que a música pede neste momento?”. A atenção parece ser a chave. Ver ou ouvir a música de fora, olhando-a de cima, distanciadamente, retirando-se do caminho entre o resultado (a música) e a ferramenta (a guitarra). Esta faceta Zen ou Mindful do guitarrista reflecte o seu controlo sobre o Ego e assume-se com a tomada de algumas respirações fundas antes dos concertos e a visualização de que o protagonismo recairá sobre ele enquanto o concerto durar.

Nas suas próprias palavras: «Para manter o interesse de um solo, como se fosse acabado de inventar, tento estar completamente ignorante e ser guiado pelo som e pelo sentimento. Quando as coisas correm bem sinto que a música está a acontecer porque eu saí, finalmente, do caminho.»

A música de Hall reflecte o facto de que todas as formas de arte se relacionam como auto-expressão. A música, a literatura ou a pintura levam o público a conhecer um pouco mais sobre o artista. A evolução da obra de Jim Hall revela isso mesmo: a confluência do sentido da música realizada, reveladora da personalidade do guitarrista. Hall não se guia por padrões, frases ou clichés; quebra-os! Ora através de motivos e deslocamentos rítmicos, ora através de derivações melódicas fora da tonalidade, ora através de algo completamente inesperado e irrepetível. Jim Hall, sempre surpreendente, sempre imprevisível.