Thelonious Monk: Vida e Obra
Ao analisarmos o estilo musical de Thelonious Monk observamos que muitas das suas composições hoje consideradas “standards” de jazz constituem uma parte significativa do repertório dos músicos contemporâneos.
O som único e pessoal que o pianista imprimiu nos seus temas e improvisações relembra-nos a importância na vida de cada músico da busca da sua própria voz, do seu som e do seu fraseado.
Neste particular, as raízes adquiridas no “stride piano”, no gospel, no boogie woogie e nos blues, aliadas às expressões idiomáticas a que se deu o nome de “monkismos” (uso da escala de tons inteiros, “clusters” e politonalidades), fazem de Thelonious um músico sem igual.
A influência dos blues, em particular, levou-o a escrever vários temas sob esta forma. Em “Blue Monk” e “Straight No Chaser” desvelam-se algumas das principais características da forma de tocar – compor e improvisar – de Monk. Frases cromáticas, grupos de seis a oito colcheias, acentuações nos tempos fracos do compasso e nos contratempos e, sobretudo, deslocamentos rítmicos.
No tema “Blue Monk”, o compositor executa uma frase que sugere um 5/4 sobre um 4/4, enquanto em “Straight No Chaser” expõe uma frase repetida em diferentes tempos e contratempos do compasso.
A exposição de hemíolas na obra de Monk surge, também, na peça com sonoridade “bluesy” com o título “In Walked Bud”. Veja-se a Secção “B” da mesma, onde a acentuação de três em três tempos sugere um 3/4 sobre um 4/4.
Labirintos harmónicos
Esta ideia tão explorada por Monk dos deslocamentos rítmicos é levada ao extremo em “Evidence”, onde as notas parecem ser tocadas num acaso rítmico. Na secção “B”, porém, assistimos a uma subida melódica cromática que culmina no #11 do acorde dominante, nota esta que ganha ainda mais destaque ao ser antecedida por um salto de tom que interrompe o ciclo de meios-tons.
Nos antípodas destes labirintos harmónicos encontramos o blues de nome “Misterioso” com uma melodia muito directa e fácil de ouvir. Ainda assim, a simplicidade do tema desvela o desenvolvimento de intervalos de sexta, bem como, mais uma vez, as progressões melódicas cromáticas. Esta ideia de progressão de intervalos (designadamente) de sextas que progridem por intervalos (designadamente) de segundas é uma ideia actualmente muito desenvolvida na cena jazzística, sobretudo a norte-americana, i.e., o desenvolvimento motívico de um intervalo (ou conjuntos de intervalos) que progride(m) por saltos de um outro intervalo diferente.
Nas suas apresentações ao vivo, Monk usava “Epistrophy” como o seu “theme-song”, pelo que existem várias gravações do mesmo. Aqui a ideia de cromatismo – tão presente em toda a sua obra – revela-se harmonicamente, sendo que a progressão exposta nos quatro primeiros compassos é transposta um tom acima nos quatro compassos seguintes. Monk joga com a expectativa do ouvinte em ouvir a repetição da Secção “A” e opta pela solução menos óbvia, invertendo a ordem dos dois grupos de frases.
Em “Well You Needn’t”, Monk lança mão de alguns conceitos já abordados – tais como o cromatismo harmónico e a transposição de motivos melódicos um tom acima –, sendo que neste tema o compositor não dispõe os acordes como dominantes, antes como tríades puras que (em especial na Secção “B”) têm um movimento ascendente para finalizarem um vórtice cromático descendente que espelha o movimento ascendente do quinto compasso.
Do ponto de vista harmónico, Monk aproveita a ideia – já experimentada por Duke Ellington (v.g.: “Prelude To a Kiss”) – da subtituição tritonal para fazer uso dela em toda a sua obra, o que revela a grande influência musical que Duke exerceu sobre Monk.
Recurso a trítonos
Na composição “Bemsha Swing”, a estrutura “AABA” (de apenas quatro compassos cada secção) é exposta através de um simples movimento harmónico |I|VI|II|V|, mas sempre através do recurso aos trítonos. Para além de Monk transformar todos os acordes em dominantes, também recorre à progressão |I7|VI7|bVI7|bII7|, seguida de um |I7|bIII7|II7|bII7|.
No entanto, Monk não só substitui tritonalmente os acordes dominantes como também faz uso da quarta aumentada como a sua nota característica, presente quer em acordes dominantes, quer em acordes maiores. É o que acontece em “Brilliant Corners”, onde o ponto de resolução da melodia sugere o modo lídio-dominante como verdadeiro centro tonal, em substituição do esperado Bb Maior (modo jónio).
Outros tipos de “monkismos” na linguagem deste compositor podem ser encontrados em temas como “Monk’s Mood”, onde ocorre uma resolução antecipada (logo no primeiro compasso) ou a resolução de uma progressão II-7 V7, meio-tom acima no bII maj7.
Muito pouco evidentes na obra de Thelonious Monk, as progressões são uma constante, sendo que o compositor parece optar, sempre, pela solução harmónica mais inesperada e surpreendente. Oiça-se “Pannonica”, onde o motivo melódico principal é repetido em ciclos descendentes, embora sobre momentos harmónicos díspares que contêm II-7 V7’s que não resolvem, cadências interrompidas, saltos de terceiras, substituições tritonais e resoluções no bII maj7 da tonalidade. Nesta peça em particular, refira-se o acrescento métrico no final, onde Monk coloca um nono compasso. Esta irregulariedade métrica atingia o seu expoente máximo quando Monk gravava o mesmo tema (em sessões diferentes) com um número de compassos não coincidentes com os das gravações anteriores.
Único e inimitável
Um aspecto de extrema importância para a formação da sonoridade característica de Monk é a sua articulação. Com efeito, era usual – na sua forma de tocar – extender a duração das notas no final das frases, assim como o modo como as acentuava. De facto, a sua abordagem rítmica continua a ser única e inimitável. O “sítio” onde as notas são colocadas (quando improvisava ou tocava uma melodia) e o “modo” como ele acompanhava outro solista ou mesmo quando acompanhava a sua própria melodia constituem o traço mais idiomático da sua linguagem.
Analisar a obra e o legado de Monk é, também, falar de dois dos temas de jazz mais tocados e interpretados de sempre – “Round Midnight” e “Ruby, My Dear”.
Nestas duas baladas podemos observar, desde logo, as introduções em piano solo de Monk. Por vezes, Thelonious – o intérprete – abordava o tema com uma “Intro” sobre a Secção “A”. Em outras ocasiões executava o final da melodia ou mesmo apontamentos melódicos ascendentes ou descendentes com recurso à escala de tons inteiros.
Em “Round Midnight” assistimos à composição de uma introdução algo mais elaborada e cuidada que sería, posteriormente, interpretada por outros músicos como verdadeira parte integrante do tema. Destaque especial para a interpretação magistral da envolvente versão de Miles Davis desta mesma partitura, o qual, apesar das divergências públicas com Thelonious Monk, não deixou de prestar o seu tributo através da sua música também conhecida como “Round About Midnight”.
Refira-se um processo de acrescento de cor harmónica por cima da melodia principal que ocorre neste tema. Esta voz está escrita numa terceira menor – não tonal – acima da melodia principal, o que a tira fora do acorde. Tal tipo de sonoridade e de recurso estilístico é – mais tarde – bastante identificável nas composições de Charles Mingus, denotando uma grande influência estética na obra do contrabaixista.
“Voicings” recorrentes
O desenvolvimento harmónico dos “voicings” de Monk tem, em “Ruby, My Dear”, um destaque especial, não só pelas subidas cromáticas da harmonia – por vezes executadas à colcheia –, mas também pela própria escolha de notas. Com efeito, é frequente assistirmos ao uso de “open voicings” (1,3,7,8) ou apenas à execução da fundamental com a sétima menor do acorde dominante. Outros “voicings” muito recorrentes passam pelo uso da fundamental sem terceira mas com a quinta dobrada em duas oitavas e uma sexta junto da sétima maior; fundamental, b7 e b9 em “open voicing”; fundamental, 5ª, b7 e b3 (acordes menores); fundamental, 5ª, 6ª e 3ª (acordes de sexta).
No tema “Ruby, My Dear”, Monk explora dois “voicings” idiomáticos na sua linguagem, apesar de bastante incomuns e vanguardistas para este período da história do jazz. Monk utiliza tanto a sétima menor como a sétima maior de um acorde de dó menor. Faz, também, uso de um estranho acorde E11 (1, 3, 7 , 9 , 3, 11), juntando a 3ª e a 11ª como forma de acrescentar tensão.
Monk foi pioneiro neste tipo de abordagem da coloração harmónica, explorando “clusters” com aproximações inferiores ou superiores às notas dos acordes, e sobrepondo uma extensão do acorde a uma nota do mesmo. Algo de semelhante podemos analisar, hoje, em músicos tão distantes de Monk no estilo, no instrumento e na abordagem musical como John Scofield e, principalmente, Bill Frisell.
De facto, é muito frequente ouvirmos a linguagem tonal e diatónica de Frisell ornamentada por aproximações cromáticas inferiores às notas dos acordes, como forma de acrescentar mais cor, dissonância e ambiguidade musical.
Monk e os “standards”
Também a abordagem de Thelonious Monk na interpretação de “standards” reflecte as idiossincrasias típicas da sua linguagem. É notória em Monk a sua capacidade de absorver e transformar um tema de outro autor em algo muito próprio, como se de uma composição sua se tratasse.
“Everything Happens to Me” reflecte isso mesmo: harmonias dissonantes, reviravoltas melódicas, uma abordagem muito pouco ortodoxa ao piano, carregada de ataques percussivos e súbitas hesitações, pausas e respirações.
Note-se a escolha dos “voicings”, os “clusters” e aproximações harmónicas às notas da melodia, o arpejar de vários acordes, as súbitas mudanças de oitava na melodia, a variedade rítmica, o uso da escala de tons inteiros num registo muito amplo do piano e até a referência às suas raizes no estilo “stride piano” no final da exposição do tema.
À medida que a música se desenvolve podemos desvelar um certo sentido de improvisação muito típico de Monk, que nunca se afasta – desnecessariamente – do tema principal. São constantes as suas referências aos motivos que o próprio expôs na interpretação da melodia e o recurso a ideias harmónicas imbricadas no sentido de tensão, surpresa e novidade.
O legado de Thelonious Monk
Numa época em que a música era servida de modo a agradar ao ouvinte, as composições originais eram um convite para assistir aos grandes concertos em salas de espectáculos e para comprar os álbuns editados, Thelonious Monk acabou por ser um músico de transição para o be bop, tendência em que o espírito individualista imperava como forma despreconceituosa de uma emergente afirmação pessoal das características fundamentais de cada um.
Esta personagem da história da música, da composição e do jazz – completamente deslocada do contexto que se vivia até então – trouxe, para além do foco no artista, a liberdade de interpretação e a sua própria “voz” (muito mais do que de um estilo).
Mesmo enquadrado no ambiente musical do be bop – ao lado de nomes como Charlie Parker e Dizzy Gillespie –, é notório o caminho desenvolvido por Monk, afastando-se do virtuosismo típico das linhas melódicas freneticamente executadas à colcheia do seu amigo Bud Powell. Na verdade, Monk combinava tanto a mão direita como a mão esquerda, trabalhando-as como se de uma só voz se tratasse, fundindo essa abordagem com a utilização massiva de todo o registo do teclado.
Monk era “o pianista” por excelência do be bop, tendo sido fundamental a sua contribuição rítmica e, sobretudo, harmónica para este estilo. Com efeito, enquanto outros exploravam novas linhas melódicas sobre progressões populares, Monk elaborava caminhos harmónicos originais que se imbricavam no rítmo e na melodia. De facto, tudo o que Monk tocava era diferente: uma melodia diferente, uma harmonia diferente, uma estrutura diferente… Aspectos que pouco sentido fariam se descontextualizados e executados autonomamente.
Uma particularidade que Monk acabou por legar aos músicos vindouros foi o conceito de “ideia musical”. Monk criava novas ideias e sugeria-lhes um certo desenvolvimento. Passados 50 anos ainda podemos encontrar e descobrir novas possibilidades musicais que esperam desenvolvimento.
Ideias como o uso de “clusters” (vejam-se as obras de Bill Evans e John Scofield), os deslocamentos rítmicos (o tema “Donna Lee”, entre inúmeros outros), as inversões da estrutura harmónica de um simples II-7 V7 (caso de Wayne Shorter), as progressões com saltos de terceiras (o conceito tão explorado por John Coltrane que tem o seu nome: “Coltrane Changes”), o desenvolvimento interválico por progressão também intervalar (o estilo de Kurt Rosenwinkle)… Tudo isto já se encontrava presente na obra de Monk, que acabou por servir de inspiração para aqueles que tocaram com ele e aqueles que ouviram a sua música.
Thelonious Monk revolucionou não só a abordagem ao instrumento como também o próprio estilo de se fazer música, através das suas composições.
O seu legado musical é inegável, assim como o seu sentido humorístico, despreconceituoso, despreocupado, relaxado e profundamente pessoal. Monk deixou-nos a sua visão e o seu entendimento da música e talvez nos tenha deixado um pouco mais do que isso. O legado de Monk passa, indubitavelmente, pela confiança e a certeza que o músico, intérprete e executante deve ter sobre a sua impressão musical, a sua voz única e irrepetível, o seu gesto característico que – por muito estranho, absurdo ou desprovido de sentido – possa parecer é algo que deve ser assumido por cada um.
Sobre Thelonious Monk disseram os críticos que era um músico que tocava a nota certa no sítio errado… Se ele próprio acreditasse nessas críticas nunca teria tocado “notas erradas” (“wrong notes”) no sítio certo.
Bibliografia
Sickler, Don: “Thelonious Monk Fake Book” (Hal Leonard Corporation, 2002)
“New Groove Dictionary of Music” – Thelonious “Sphere” Monk.
Eastwood, Clint: “Thelonious Monk – Straight No Chaser”(documentário)
Wikipedia: www.wikipedia.org/wiki/Thelonious_Monk
Discografia analisada
“Bemsha Swing” in “Brilliant Corners”
“Brillant Corners” in “Brilliant Corners”
“Evidence” in “Art Blakey & Thelonious Monk”
“In Walked Bud” in “Art Blakey’s Jazz Messengers with Thelonious Monk”
“Blue Monk” in “Art Blakey’s Jazz Messengers with Thelonious Monk”
“Straight No Chaser” in “Genius of Modern Music – Vol. 1”
“Epistrophy” in “Monk’s Music”
“Pannonica” in “Monk” e “Brilliant Corners”
“Round Midnight” in ”Thelonious Himself” e “Genius of Modern Music – Vol. 1”
“Ruby My Dear” in “Genius of Modern Music – Vol. 1”
“Well You Needn’t” in “Genius of Modern Music – Vol. 1”
“Off Minor” in “Genius of Modern Music – Vol. 1”
“Monk’s Mood” in “Genius of Modern Music – Vol. 1”